Há impedimento de rescisão contratual quando o inadimplemento é ínfimo?

Por Camila Cabral

O renomado Clóvis Bevilagua (1934, p. 245) conceituou, classicamente, o contrato como sendo “acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos”.

Assim, os contratos são manifestações de vontade dos pactuantes, bem como enseja direitos e obrigações a quem está participando, podendo ser bilateral (duas pessoas) ou plurilateral (mais de duas pessoas).

Pois bem.

No contrato em que se tem como obrigação a entrega de uma coisa e, em contrapartida o pagamento pela respectiva coisa, por óbvio que a inexecução do contrato, a título de inadimplemento pode ensejar a rescisão contratual e, por consequência, a parte credora pode retomar a posse da coisa contratada.

Contudo, há situações em que a extinção do pacto e, por conseguinte, a retomada do bem não se mostra possível e, embora não esteja disposto em lei, tal situação é comumente aplicada no ordenamento jurídico, por construção doutrinária e jurisprudencial.

Uma delas é a Teoria do Adimplemento Substancial, que, ressalte-se, não exclui a mora do devedor, apenas determina que a dívida persistente seja cobrada de uma forma menos gravosa do que a extinção contratual.

Em que consiste a Teoria do Adimplemento Substancial?

A teoria do adimplemento substancial contratual versa sobre hipóteses impeditivas de resolução unilateral do contrato. Isto é, quando não se pode encerrar o negócio jurídico ainda que haja inexecução parcial do contrato, mas essa “proteção” somente é dada quando se há, como o próprio nome da teoria já deduz, um cumprimento significativo do contrato e o saldo devedor se mostre insignificante.

Essa teoria surgiu para dar maior segurança jurídica as relações contratuais quase cumpridas.

Evidencia-se, por oportuno, que isso não pode ensejar um sentimento de conforto ao devedor, como se estivesse em vantagem perante o credor, pois a dívida persiste. O contrato somente não pode ser rescindido, mas a cobrança do valor em aberto pode ser efetuada, seja por meio de uma ação de ação de cobrança ou execução, buscando a solução do imbróglio de uma forma menos gravosa.

A origem da Teoria do Adimplemento Substancial é do Direito Costumeiro Inglês, sobretudo na utilização do termo “substancial performance”, sendo um de seus primeiros casos registados o de Boone v. Eyre, de 1779. 

Já no Código Civil Italiano há previsão expressa do adimplemento substancial, em seu art. 1.455, que, em tradução livre, estabelece que o contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes é de pouca ou de escassa importância dado os interesses da outra parte.

O Código Civil Brasileiro não estabelece de forma expressa sobre essa teoria e, para suprir essa lacuna há importante associação da respectiva teoria aos princípios contratuais, como o da boa-fé e da função social do contrato.

Aliado a isso, aprovou-se, na IV Jornada de Direito Civil, em 2006, organizada pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, o Enunciado nº 361:

Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.

Conforme precedentes do STJ, a aplicação da mencionada Teoria exige o preenchimento cumulativo de três requisitos: 

a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; 

b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; 

c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.

Mas, qual seria o percentual estimado para se caracterizar um adimplemento substancial?

Uma “boa” problemática.

Isto porque, ainda não há clareza quanto a delimitação de percentuais e, tendo-se, apenas, alguns critérios: objetivo: que é exatamente a verificação da extensão do descumprimento e; subjetivo: que é exame da conduta do devedor para se constatar se o inadimplemento se mostra como uma conduta reiterada ao longo da relação contratual.

Observem os julgados que consideraram tanto 84%, como 68% como adimplementos substanciais:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C REINTEGRAÇÃO DE POSSE E PERDAS E DANOS. COMPRA E VENDA DE BEM IMÓVEL. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. APLICABILIDADE. HONORÁRIOS RECURSAIS. MAJORAÇÃO. 1. Segundo precedentes do STJ, a incidência da teoria do adimplemento substancial visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. 2. No caso, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria os princípios basilares do Direito Civil, uma vez que o recorrido cumpriu 68,75% da obrigação total. (..) RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJ-GO – APL: 04117100920138090021, Relator: LEOBINO VALENTE CHAVES, Data de Julgamento: 13/06/2019, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 13/06/2019)

APELAÇÃO CÍVEL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NO CASO CONCRETO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS MANTIDOS. I – Constatado nos autos o pagamento de 84% do valor ajustado, caracterizado está o adimplemento substancial a recomendar a manutenção do contrato de promessa de compra e venda objeto da lide, facultada a credora a cobrança do débito. Contrato mantido. (…) APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70069318822, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Julgado em 28/07/2016).

Contudo, na contramão de entendimento de diversos doutrinadores, o STJ tem afastado a aplicação dessa Teoria nas hipóteses de alienação fiduciária. Logo, ainda que o inadimplemento seja mínimo, a Corte Superior acolhe a resolução do contrato com perdimento do bem objeto de alienação.

Por outro lado, essa teoria é amplamente utilizada nos contratos de compra e venda de imóvel, por exemplo, como se viu das jurisprudências acima colacionadas. 

Sendo assim, o ideal é o adimplemento contratual, mas sabemos que nem sempre isso é possível por uma infinidade de motivos e, se você estiver em uma dessas situações, observados os critérios/requisitos, com saldo mínimo de débito, pode invocar a multicitada teoria para seu contrato se manter vigente e, paralelamente, buscar meios de saldar o que deve, pois, como visto, essa teoria não enseja a purgação da mora.

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