Bem de família é aquele bem imóvel que tem como escopo a residência e moradia da entidade familiar e, é protegido pela “impenhorabilidade”. Isto é, o mencionado bem “não pode” ser objeto de penhora ou apreensão para quitação de dívidas, sejam elas de natureza civil, previdenciária, fiscal ou qualquer outra.
Vejam o que dispõe o art. 1º, da Lei nº 8.009/90:
Lei Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Caio Mário da Silva Pereira (2004, p.557-8) em sua inteligência, dispõe: “é uma forma da afetação de bens a um destino especial que é ser a residência da família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua constituição, salvo as provenientes de impostos devidos pelo próprio prédio”
Como se pode observar pelo dispositivo legal e conceituação acima, a entidade familiar, no caso em espeque, seria de pessoas casadas e com prole, o conceito primário, portanto, da referida expressão.
Mas somente as pessoas casadas poderiam possuir um “bem de família” e, por conseguinte, gozar da impenhorabilidade do respectivo bem?
Com o caminhar dos tempos e a evolução da jurisprudência, viabilizou-se o avanço de debates enriquecedores sobre o tema, o que resultou no Superior Tribunal de Justiça ter confirmado a possibilidade de extensão dessa proteção aos indivíduos solteiros, divorciados e viúvos.
Em essência, o direito de moradia começou a se sobrepor a caraterização formal e arcaica de entidade familiar, de modo que o bem de família não se limitaria apenas a pessoas casadas e/ou com filhos, mas sim as demais pessoas que não possui esse mesmo status civil.
O Ministro Humberto Gomes de Barros prelecionou o seguinte:
A interpretação teleológica do art. 1º, da Lei n. 8.009/1990, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão” (Embargos de Divergência no REsp n.º 182.233/SP)
E dessas discussões e avanços de entendimento, resultou na Súmula 364, do Superior Tribunal de Justiça:
“O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.”
Que, de forma, inquestionável, deixa clara que o benefício de proteção do bem de família, se estende para pessoas não casadas, ampliando, de certa forma, o conceito de entidade familiar e, agasalha o direito mais importante que está protegido por meio dessa benesse, que é o direito de moradia.
No entanto, seguindo a linha de evolução jurisprudencial, tem-se que, atualmente, a impenhorabilidade do bem de família não se mostra tão irretocável como antigamente, visto que, já há entendimentos de que, a depender do valor econômico do bem de família e da dívida que se estaria sendo discutida, poderia sim realizar a penhora do respectivo bem.
Para que esta possibilidade ocorra, necessário se faz que com a satisfação da dívida, o saldo remanescente da alienação do bem de família viabilize a compra de outro imóvel para que o credor permaneça com seu direito de moradia.
Essa flexibilização da impenhorabilidade se dá pelo fato de se entender que a irretocabilidade não se está no imóvel que serve de moradia, mas sim no DIREITO de moradia. Logo, a proteção não alcança o vultoso imóvel que é bem de família, mas sim o direito de a pessoa ter um lugar para morar com dignidade, mas, talvez, sem o luxo do antigo bem.
OBJEÇÃO PRELIMINAR – PRETENSÃO DE REVOGAÇÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA CONCEDIDOS À APELADA EM 1º GRAU – DESCABIMENTO – (…) EMBARGOS DE TERCEIRO ACOLHIDOS, COM DETERMINAÇÃO DE LEVANTAMENTO DA CONSTRIÇÃO – precedente rejeição, por falta de provas, do pedido formulado pelo executado, de reconhecimento do imóvel como bem de família – legitimidade para pugnar pela proteção conferida pela lei ao bem de família que é da entidade familiar – possibilidade de exame da questão nos presentes embargos – qualidade de bem de família demonstrada nos autos – imóvel localizado em bairro nobre da cidade de São Paulo, avaliado em quatro milhões, quinhentos e cinquenta mil reais – circunstância que torna possível a penhora e alienação do bem de família com restrições, com reserva de parte do valor para que a apelante possa adquirir outro imóvel, em condições dignas de moradia – solução que não implica violação à dignidade da família do devedor e que, ao mesmo tempo, impede que a proteção legal ao bem de família seja desvirtuada de modo a servir de blindagem de grandes patrimônios – interpretação sistemática e teleológica do instituto do bem de família (Lei nº 8.009/90)– penhora e alienação, com reserva do produto remanescente para a aquisição de outro imóvel, talvez mais modesto, mas nem por isso de pouca qualidade – bem que não poderá ser alienado por menos de 80% (oitenta por cento) do valor da avaliação atualizada que, especificamente no caso dos autos, será considerado preço vil – restrição que faz com que o remanescente certamente seja suficiente para aquisição de moradia apta a garantir padrão similar de conforto ao do imóvel penhorado – reconhecimento do bem de família mantido, contudo, com a manutenção da penhora para venda do bem penhorado nos termos delineados – recurso parcialmente provido, com determinação. (TJ-SP – AC: 10942440220178260100 SP 1094244-02.2017.8.26.0100, Relator: Castro Figliolia, Data de Julgamento: 02/09/2020, 12ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/09/2020)
Desta forma, havendo condições de satisfação da dívida e aquisição de imóvel para a moradia da entidade familiar (seja ela de pessoas casadas, com filhos, sem filhos, solteiras, divorciadas, viúvas), preservada está a benesse primordial do bem de família.
Camila Cabral, advogada especialista em Direito Imobiliário.